O nome dela é Pedro e ela é um monstro
Debrucei-me pela primeira vez neste exercício há meses, mas só
agora consegui voltar a olhar para o projecto por motivos que se
prendem com a natureza da escrita autobiográfica.
A tarefa autobiográfica é sempre uma tarefa difícil, que opera
num interessantíssimo espaço textual - ou mesmo intertextual.
Por um lado, a autobiografia, como forma de trabalho biográfico,
pode ser vista como uma extensão, uma protuberância, do que
é o trabalho histórico em si. Se é esse o caso, então a biografia
carregou e carrega com frequência aquilo que a história tem de
pior: narrativas heróicas, hagiografias, vilificações, e sempre
uma História que depende das agências dos Grandes Homens.
Há aliás até espaço para perguntar se foi a biografia que surgiu
enquanto empreendimento histórico ou se foi a história que
surgiu enquanto empreendimento biográfico. E não é de estranhar
também que, ainda hoje em dia, a biografia tenha em dia um lugar
especial nas estantes populares das nossas livrarias. Deixando
para trás a hagiografia, pelo menos parcialmente, a biografia
assume um papel mais activo na auto-construção do eu moderno,
disciplinado e controlado: o eterno esforço da criação de narrativas
individualizantes numa constante tensão com a vigilância do
indivíduo moderno. Esta vigilância é um processo de auto-heteroconstrução
do eu moderno, i.e. a constituição do eu a partir da
construção de personagens conceptuais vigilantes que imagino
ser os outros. Disse-em uma vez um professor, e com razão, que
‘o segredo para uma biografia de sucesso sobre um génio é que a
cada momento o leitor sinta, em simultâneo, o quão inalcançável
é aquela personagem, e uma empatia que faz do próprio leitor o
génio.’ Aqui a tensão constante: a idealização e inalcançabilidade
do nosso eu, a camada mais visível do nosso ego, a auto-heteroprojecção
da nossa imagem social que construímos ao imaginar
o que os outros imaginam de nós, o interminável projeto instafacebookeano.
E claro, no pólo oposto ao da hagiografia mas
ainda dentro da sua matriz, a biografia vilificante: Hitler, Estaline,
Hirohito, Pol Pot, Saddam, Bin Laden. Estrelas do espetáculo de
monstruosidades desviantes cuja conclusão é sempre a auto–
identificação da leitora com o Homem do capitalismo ocidental,
e a rejeição antagónica de qualquer modelo que lhe tenha feito
frente.
Mas a autobiografia é diferente. Por um lado porque quem
a escreve, escreve-a de um lugar epistemológico privilegiado:
escreve-a aquela que tem um privilégio de acesso ao objeto que
mais ninguém tem, precisamente por ser o próprio objeto. Tem
acesso a histórias que não foram contadas, a sentimentos, a
memórias... que é como quem diz, à pretexta subjetividade do
objeto. Por outro lado assume-se à partida a existência de falhas
na objetividade da escrita-sobre-si-mesma. Este é aliás um dos
lugares-chave imaginários da parcialidade a partir dos quais se
constrói a ideia de imparcialidade enquanto exterioridade. E nesse
sentido a autobiografia oferece uma possibilidade de rompimento
com a ordem epistemológica de um texto como poucas outras
formas textuais o fazem. O lugar de enunciação é situado, em
princípio e por princípio, e contrariamente a tudo o que se assume
como factual.
É isto que faz a tarefa autobiográfica tão difícil. Apresentase
como fácil, óbvia até; mas reconhecemos bem como nessa
facilidade, se escondem as premissas das formas que combatemos
- se escondem a construção do indivíduo como o conhecemos hoje
em dia, a constituição de histórias identitárias e do apagamento
daquilo que não se lhes conforma, a reiteração formulaica
dos lugares que se dão à compreensão, que nos precedem, que
partilhamos, também que nos dominam. E o incómodo que fica
no ar é suficiente para que valha a pena abordar a pergunta que
o causa: Temos de rejeitar a prática autobiográfica à conta destas
dificuldades?, não haverá formas disruptivas da escrita-do-eu?, há
vida-escrita para além do Autor? E rejeitar a escrita autobiográfica
não é uma pretensa elisão de um eu que persiste?
O que é que isto tem a ver com o apelo dos mariconcitos? Porque
é que começo por referir estes problemas? É que é este o dilema
central que me fez confrontar: Por um lado a escrita-do-eu; por
outro a vontade de a usar como instrumento desconstrutivo do
pensamento-de-mim; por um lado o risco de nos pensarmos origem
do que somos e do que escrevemos, por outro a possibilidade de o
ultrapassar pelo exercício que à partida o constitui; por um lado
a sombra inebriante da Autoria, do outro uma visão-alucinação
da escrita que a ultrapassa. No que toca aos mariconcitos: por um
lado o medo de essencializar a paneleirice; de imaginar que nós,
paneleiras, sempre fomos o que somos, como se não houvesse um
devir-paneleiro tal como há um devir-mulher; o medo de construir
uma história do miúdo maricon, de construir uma narrativa que
naturalize a nossa feminilidade, as nossas disrupções sexuais e
de género - mas também a compreensão da necessidade dessas
narrativas, de pôr em cima da essa essa figura sempre apagada,
reprimida e castigada, que é o mariconcito, o maricas, o larilas. O
medo terrível de que o contar a minha história ou a minha vida
seja usado para me explicar - de onde venho, o que sou, a minha
natureza- mas por outro lado, a esperança de que sirva, se me faço
entender, precisamente para me desexplicar. Ou seja, do outro lado
está a vontade de criar um sujeito paneleiro, um sujeito que para
além do mais não tem medo de instigar o conservadorismo que se
faz guardião da infância (Will someone think of the children?!), e
de criar algo, bem no coração dessa imaginada inocência, que não
é nem homem-por-vir nem mulher -por-vir, que é traveca mesmo,
em toda a sua potência, mas que deixa por dizer aquilo em que se
vai tornar, que resiste, ora aí está, à categorização e taxonomia de
um pequeno-adulto.
...
Se olho para a memória, o primeiro que me aparece é névoa
heterossexual. E vem à língua dizer, como tantas outras que ainda
não se a entregaram à névoa para ver fumaça: não, disso não tenho
memória, fui gay mas nunca afeminado, nunca paneleiro, nunca
maricas.
O exercício modela a memória, a observação constitui o
observado, e por entre as gotas suspensas do esquecimento lá
surgem os cotovelos de ferro das estátuas das lembranças. Nem
sempre lá estiveram, apesar de já cá estarem, e não caio na esparrela
de achar que nasceram criadas, que não foram esculpidas. São
memórias não porque existissem em exterioridade - de facto
foram convocadas, não descobertas - mas no significado próprio
da etimologia que vai ao latim mere: atrasar, demorar, tardar,
entravar. São coisas que demoraram a vir, que ficaram presas em
pedaços de tempo que não viram continuidade. E ao aproximarme
dessas estátuas, abrindo a névoa, dando-lhes forma, vejo os
seus contornos que antes viviam escondidos. Lembro-me de ser
miúdo e de me adorar mascarar, de pôr as jóias da mãe, os casacos
e os sapatos. Não que fosse uma atividade em si feminina, era um
carnavalizar os dias, mas era, já assim, bastante extravagante, um
piscar de olho ao camp. Vejo uma criança que fez karaté durante
cinco anos por não querer passar a vergonha de ser o único rapaz
nas aulas de ballet. Vejo um puto que aprendeu a não se sentar
de pernas cruzadas porque, apesar de ninguém o dizer, isso era
de quem não tinha grandes tomates - lembro-me até de ver o
primeiro ministro da altura na tv, de perna cruzada, e pensar ‘este
é paneleiro!’ com um misto de orgulho macho de mim próprio e
empatia embaraçada. Lembro-me também de aprender - não que
alguém tivesse de ter ensinado - que homem punha as mãos à
frente na cintura e as pousava perto da virilha, e não andava com
elas nas ancas, apoiadas nas gorduras que só as mulheres podiam
ter ao fundo das costas. Vejo o puto que, com catorze anos, no
início da descoberta da masturbação, se deixou levar pelo desejo
de ver umas fotografias de porno gay. O puto que se veio mais
do que nunca e concluiu categoricamente: “Pronto, Pedro, és
gay, tudo bem, agora só tens de esconder isso para o resto da tua
vida.” Vejo o puto que se apaixonou por um gajo bem mais velho
e com estatuto, que por sua vez usou da fragilidade paneleira do
primeiro para abusar dele emocional e psicologicamente. O puto
que saiu do armário temendo nada e cheio da alegria do amor, só
para encontrar um pai que ficou meses em silêncio e uma mãe que
passou a noite em branco e que, de olhos vermelhos, lhe perguntou
pela manhã ‘Mas o que é que eu fiz de mal na tua educação?’
Mas acima de tudo vejo uma criança que se sentia, e de facto
era, profundamente inadequada e que vivia apavorada com a
possibilidade de lhe descobrirem a sua natureza alienígena. Era
uma criança cheia de vergonha, violentamente só, que não tinha a
quem socorrer, que se via ao abandono. Há duas estátuas-memórias
de que me lembro particularmente quando penso nestes afetos. A
primeira é a de, com oito ou nove anos, ter experiências sexuais
com o meu melhor amigo. Na verdade, mais do que sexuais,
eram pornográficas. Íamos para casa da mãe dele, para o sótão,
entrávamos em sites porno, e imitávamos um no outro aquilo que
víamos. Aquilo que melhor o ilustra é talvez a lembrança carnal de
pôr uma pila murcha de criança na boca, com a devida cerimónia
para que os lábios não a tocassem, e não houvesse realmente
contacto. Mas mais do que isso fica a memória-mágoa de quando,
ao comentar a minha vontade de continuar a expressar aquele
desejo, o rapaz-criança, se fazer desentendido, por certo por ter
noção de “errado” da situação. Essa história acaba aí e é a primeira
memória que tenho de um profundo abandono, de uma profunda
solidão.
A outra estátua-memória, desta vez mais ligada à vulnerabilidade
do que à delinquência sexual foi construída a posteriori. É a de
um bebé, nu, recém-operado, à mercê do mundo, sem sistema
imunológico, sem capacidade de autoproteção. É uma estátuamemória
construída a partir desta imagem. E é impressionante
como me lembro de tão poucas coisas na minha infância, mas como
me toca tão visceralmente esta memória fabricada do período
pós-operatório - de novo coisas atrasadas no tempo, retardadas.
Durante muito tempo tive dificuldade em olhar para esta
foto. Ela mostra-me no meu estado mais vulnerável. É um tremor
visceral de me enfrentar criança, com três anos, depois de uma
peritonite que me deixou às portas da morte. Não que o medo
fosse de morrer, o medo era desse estado desprotegido. E mais
do que isso, era um sentimento de nojo. Nojo dessa criança, nojo
dessa impotência, nojo de ser esse bebé.
Sei que por vezes as minhas amigas têm dificuldade, ainda
hoje, em conceber-me como alguém que carrega em si, e ao
mesmo tempo, uma vulnerabilidade profunda, um sentimento
constante de fragilidade, uma violenta volatilidade emocional. E
ao mesmo tempo não só o desejo mas efectivamente a necessidade
de confronto, de lhes espetar a minha anormalidade nas caras, de
vestir uma saia, pôr brincos compridos e pintar os olhos - não
só também mas acima de tudo nos dias em que estou mal. Uma
amiga muito próxima escreveu-me há pouco tempo: Ela usa saias.
Ela usa brincos e colares todos os dias. É alta, magra e move-se
com uma delicadeza ingénua e algo atabalhoada. Ela é dona do
mundo, centro de todas as atenções em qualquer lugar onde está.
(...) Chamam-lhe paneleiro, maricas, palhaço. Acusam-na de ser
um snob auto-centrado, com sede de protagonismo, um prepotente
académico que não conhece o mundo. Um individualista,
dominador de flirts, que dorme com toda a gente. Eles não sabem
nada dela. Não sabem do esforço permanente de resistência dela.
Pois bem vem daqui. É daqui que me lembro ter primeiro
contacto com o pequeno monstro dentro de mim, o monstro
do mostrar medo do estar desprotegido, do ser vulnerável e
impotente, da possibilidade do ser abandonado e deixado só, no
meio da rua, para que morra. Cá está o monstro que deixei num
armário, trancado a sete chaves, para que ninguém veja quem sou,
com medo de ficar só. E toda a gente sabe, embora possa não o
admitir, que um monstro é só uma criança que cresceu presa.
A Eve Kosofsky Sedgwick escreve que “ao interromper a
identificação, também a vergonha produz identidade. De facto,
vergonha e identidade mantêm-se numa relação mútua bastante
dinâmica, ao mesmo tempo desconstituinte e fundacional,
porque a vergonha é em simultâneo peculiarmente contagiosa
e peculiarmente individualizadora.” Essa vergonha, como esse
medo e essa vulnerabilidade, peguei nelas como arma e escudo.
Ao princípio foi um enfrentamento. Aquela criança trancada tinha
virado Adamastor, um monstro que não se reconhece criança. Mas
fui percebendo que, como acontece com quaisquer crianças más,
não se tratava de discipliná-las, mas de lhes respeitar a violência.
Agora, venho há anos a tentar reconciliar-me com o meu monstro
mariquinhas, com o meu monstrosito maricon, destranquei-o do
armário e tenho tentado, o quanto possível, andar de mão dada
com ele. Reconheci as partes que me amedrontavam, mas também
a sua potência: É o monstro que se revolta, que me permite ter
a força para me maquilhar, para ser bicha, para usar saias, foi o
monstro que, nos meus sonhos, veio em meu socorro e mandou
ao caralho aqueles que me gozavam por andar de mãos dadas com
um gajo. Ele dá-me a raiva e a fúria que eu tranquei de lado, ele
quer pancada quando eu quero fugir, ele grita sou paneleiro sim
caralho, qual é o teu problema seu procriador de merda quando
eu só me quero esconder.
Este conto, sei-o, está longe de acabar. Toda a gente sabe que
os monstros só existem em tensão, só existem em marginalidade.
Desapareceram das margens do mundo quando se navegou
redondo o mundo. Ressurgiram, nascentes, nos seios das vilas
europeias como presságios da fúria divina. Foram domesticados
em frascos de laboratório e ainda assim não deixaram de surgir,
incólumes e mais feios do que nunca, na mesa de laboratório
de Frankenstein, no ventre de Mary Shelley, no parlamento de
monstros de Wordsworth. Tentou-se criá-los, a época da ode à
teratogenia, mas ainda assim não nos espremeram do desconforto.
Ressurgiram fantásticos, aliens, mitopoéticos, conhecidos pelas
ciências sociais e psicológicas mas sempre aberrações, nojentas,
de-generadas. Este conto está longe de acabar. Na minha estória,
como na história do Homem que as monstras sempre vêm pôr
em causa. Também elas espreitam dos frisos proibindo que me
cale a mim própria contando uma estória final; não, ela é sempre
provisória, ela é sempre só mais um entendimento, ela é sempre
precária, e só sedimenta quando, por medo, tenta matar monstros.
Se há alguém a quem se possa confiar a produção autobiográfica é
aos monstros: é difícil a coerência quando se pratica a teratografia.
A minha mariconcice, ser maricas, medroso, veio o orgulho
retirá-la à vergonha. O monstro cá continua, por vezes aterrador,
amedrontando. Mas transformou-se também numa potência de
vida que a cada dia me desafia a experimentar o desconfortável,
a devir mais paneleira, mais incómoda, menos domesticável. O
mesmo monstro maricas que me amedrontava transformou-se
numa enorme criatura insurreccional.
​
Pedro Feijo
Desde Portugal.
Contacto: pedr.feijo@gmail.com